Por esta altura, aquilo que parecia adormecido, recalcado no
peito, levanta a tampa pesada, de chumbo do baú e começa a manifestar-se. Começa
com um pequeno incómodo, uma sensação de inquietude, ligeira, moinha que se
torna constante e cada vez mais exponenciada. E chega aquele instante em que
tomo consciência do que é.
É tão só e apenas a consciência de que faz mais um ano… (e
já são três, como é possível??) do dia mais difícil da minha vida. Chavões :
parece que foi ontem, a vida muda num instante. Tudo verdade. Mas esta verdade
que trago no meu peito, nunca ninguém a entenderá. Só porque é a minha,
relativamente ao dia em que partiste. Este peso imenso de vazio no peito, que só
aqueles que ficam sós de pais neste mundo entendem, nunca mais me abandonará.
Estive estes três anos a resenhar constantemente na minha
cabeça estas palavras. Amachuquei mil rascunhos imaginários, que me doeram, que
não eram o tempo certo, que não gostei…
Relembro-te todos os dias, claro. Numa expressão, num pombo
que aparece em cima de um fio de eletricidade que passo a caminho. Num barulho
estranho, num esquilo que teima em aparecer sempre em dias especiais, ou dias
em que algo está prestes a acontecer. Repito muitas frases que dizias a miude,
como quem declarava verdades universais. Eram as tuas, e ai de quem delas
duvidasse.
Zango-me muitas vezes contigo ainda. Pergunto-te porque não
fizeste diferente. Repito discussões que tivemos e nas quais gostaria que
tivesses entendido o que te procurava dizer. Porque em todas elas, eu era apenas
uma menina, a tua menina a procurar a tua aprovação. Foram anos, toda a minha
vida até que te foste embora, de dedicação, de tentativa e esforço de te chegar
aos calcanhares, de veneração cega, até determinada altura. E depois mais
consciente, embora nunca tendo conseguido cortar aquele cordão que me amarrou a
ti e à tua visão do mundo, até bem tarde. Desses tempos, muitos deles bem
difíceis, guardo ainda, como traço de personalidade a constante procura da
perfeição, do ser boa o suficiente, de fazer bem, de procurar sempre… mas
sempre, ser melhor.
Desse esforço hercúleo e desgastante, muitas vezes, aprendi
também a perdoar as minhas imperfeições, a deixar-me ser eu, e apenas eu. A ter
tempo para mim, para a minha família, sem cobranças. A deixá-los ser, sem
julgamentos ou expectativas.
Às vezes, peço-te ajuda, outras vezes tento nem sequer falar
contigo, para que, do alto onde estás, não interfiras no que vamos querendo
fazer e com o qual muito provavelmente não estarias de acordo.
Como vês, temos cuidado do que nos deixaste e do que
conseguimos que ficasse connosco. Honramos-te em cada malva, em cada pé de
alecrim que transplantaste para este pequeno paraíso, onde deixaste o teu
traço, a tua pincelada. Esta história, aqui contada em cada passada destes
caminhos que desbravaste, será sempre ligada a ti, será sempre a tua história. E
recebo muito carinho de todos os que te conheciam e que têm a candura de mo
transmitir. Deixaste um grande legado, eras o homem do leme.
Na minha rebeldia, vou alterando algumas coisas. Vou
construindo outras histórias, as que são agora as nossas, sem ti tão perto. Vou
tomando as rédeas.
Quereria ter sempre a tua aprovação, já sabes. Sei que
andarás por aí, consigo sentir a tua presença. Quero apenas construir um
caminho de paz interior, onde lidarei com este vazio violento, e aprenderei a
dar-lhe maciez e doçura. Tentarei sempre tornar-me numa mulher do leme… onde a
vida não seja sempre a perder.
Será, peço-te que assim o entendas, a maior honra que te
farei.
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