Porque há vida para além da paisagem... para além da rotina diária, do mundo das notícias e do ecrã. Reflexões daqui, dali de acolá ... e de cá de dentro, que é onde a nossa paisagem se molda e gera paz.

sábado, 19 de dezembro de 2020

A História do Leite-creme do Natal

Esta é a história do leite-creme do Natal. Do meu Natal. E bem vistas as coisas, do Natal de algumas outras pessoas e famílias também. É isto:

Em tempos recuados (sim, já tenho uns anos valentes para poder usar esta expressão, que adoro!) da minha infância, o Natal fazia-se num espaço chamado lareira, com uma grande lareira (imagine-se!) alentejana, ou seja toda aberta e, uns anos mais tarde, uma já fechada, mas igualmente grande. Na casa dos meus pais, claro.

Como em todos os lares, havia iguarias, doces e salgadas, que não podiam faltar. Uma delas era o leite-creme. Caseirinho, caseirinho. A minha mãe, na véspera da véspera, para que pudesse ter tempo e paciência, munia-se dum tacho, largo e começava a fazer o doce, passando as gemas de ovos por um passador, que juntava ao leite e açúcar ao lume. O processo era lento. Para mim, criança, era uma eternidade. Mexe e mexe e mexe… muuuuuuuuiitoooooo lentamente. Nada de maizenas para engrossar… Tudo muito devagarinho e lume muito baixinho.

Na verdade, a receita foi transmitida de uma senhora amiga da família, a D. Floripes, que o fazia num fogareiro com brasas de forno. Horas a mexer. Para depois fazer chegar às casas de quem tinha pedido este mimo. Passinho a passinho, numa taça, a tentar não verter pelo caminho.

Então, findo o processo de cozedura, aguardava-se que o meu pai, com uma pá de ferro, que colocava a aquecer nas brasas da lareira, queimasse o leite-creme, com açúcar amarelo, que deitava generosamente por cima do preparado. O cheirinho a açúcar queimado… estão a sentir?!...

Os anos passaram e o Natal, o meu Natal passou a ser na minha casa e fui eu que comecei a fazer esta iguaria-memória-de-natal-doce- inesquecível- cheio-de-calorias-mas-que-sabe-pelas-horas-e-que-faço-uma-vez-por-ano.

Do fogareiro com brasas, passando pelo lume a gás, estou agora com o tacho em cima duma placa vitrocerâmica, a tentar não talhar os ovos, no lento processo de engrossar a dita mistela. Nem vos conto as vezes que foi tudo por água abaixo, literalmente, por lume demasiado quente, ou por um minutinho em que desviei o olhar…

O meu pai, quando chegava à hora da ceia de Natal, tinha a mesma tarefa de queimar o açúcar, mas agora com um ferro eléctrico. No ano passado, por causa do muito fumo que deita, decidimos fazê-lo na rua, ao pé da janela da cozinha. Sem querer, acabámos por queimar a madeira da janela (imagem da foto)… mas, pronto, ossos do ofício de quem cria memórias de Natal, pensei eu…Nunca imaginei que tanta importância teria...

Pois bem, este Natal voltarei a fazer o leite-creme. Mais paciência a mexer o tacho, talvez. Mas, infelizmente, sem o meu pai para o queimar… Já pedi ao meu mais novo para começar a nova tradição, de ser ele a pegar no açúcar e no ferro, para, com todos os cuidados, honrarmos a sua presença nas nossas vidas, com este gesto simples mas que sempre nos fará recordá-lo. Todos os anos, ele avaliava:” Oh Ana, está quase… “, ou “ Está um bocadinho líquido…” e a mais recente, a notícia de que o meu irmão estava a conseguir fazer a receita na Bymby… “Blasfémia!” – pensei. Mano, vai uma aposta que o meu é melhor que o teu?? Ou serão as nossas primogénitas a seguir com novas tradições??

E a receita, afinal, qual é? Claro que não vos vou dar as quantidades certas – porque o segredo é a alma das memórias. Neste caso, de Natal. Do meu Natal.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Clube dos Pais Mortos


 


Episódio 3.458.323 de Anatomia de Grey... ou talvez não tantos, porque o George ainda estava vivo...


O pai de George morre e, ao contrário do que se poderia esperar, é a fria Cristina Yang que se aproxima dele para o confortar. E diz:

"-Há um Clube dos Pais Mortos. Ninguém nos convida, mas entramos para ele sem querermos. É devastador, e só quem a ele pertence, percebe o que significa."

"-Não sei viver num mundo em que o meu pai não exista." - responde o George.

Yang remata:

" -Sinto muito que pertenças agora a este clube."

...

É isto. 

Vezes dois.





sexta-feira, 26 de junho de 2020

Os Verdadeiros Super Heróis deste Ano lectivo




Hoje termina o Ano lectivo 2019/2020...
Bem... quase, visto que há ainda alguns 'atletas a correr para a meta' dos exames.
Com um filho a terminar o 3º ano e outra a terminar o 11º, estou a passar por estas duas experiências.

Com a autonomia e dedicação da mais velha, com uma pauta de notas irrepreensível, a minha maior preocupação foi, neste tempo de #EnsinoÀDistância, o mais pequeno. 
A sua ainda falta de autonomia revelou a dependência da presença constante desta professora-improvisada-em-tempo-de-pandemia em que muitos pais se tornaram neste tempo amaldiçoado. Pude acompanhá-lo, ainda que sempre com falhas, mas, neste momento, faço a minha vénia a todos os pais trabalhadores, que depois do dia de trabalho...

... enfrentaram quimeras diários de manuais de Estudo do Meio, Matemática e Português (e outras disciplinas em anos lectivos diferentes), 
e mais os livros de fichas 
e mais as aulas na Escola Virtual 
e mais as ferramentas da Leya 
e mais o Padlet 
e mais o Scratch 
e mais o MicrosoftTeams 
e mais os Zoom 
e mais os trabalhos manuais e os projectos sobre o relevo e as experiências com ímanes.... 

E mais as birras do não-quero-fazer-porque-não-estou-na-escola e quero-ir-jogar-fortnite-porque-senão-o-mundo-acaba

E aos pais que o tiveram de o fazer em tele-trabalho, enquanto falavam com clientes ao telefone e se ouvia um tenho-uma-dúvida-pai lá atrás. 
E aos pais, que não conseguiram, pelos mais diversos motivos, acompanhar os seus filhos mas que tentaram por outros meios que eles não ficassem para trás.

Mas também faço a minha vénia aos alunos que, com a capacidade vertiginosa de adaptação que os caracteriza, entraram, de uma forma ou outra, neste ritmo completamente impensável há uns meses e responderam ao desafio desta 'nova normalidade', como agora se diz.

Mas a vénia não fica completa sem o devido reconhecimento aos professores (a cara mais próxima da organização de tantos agrupamentos) e, que mandaram uns poucos, outros  muitos trabalhos, que nos entraram pelos ecrãs de nossa casa, que nos deram cabo da cabeça com toda a orgânica escolar que tivemos, nós pais, de também dominar rapidamente e que agarraram os seus alunos da melhor forma que conseguiram. 
Se para nós foi extenuante, para eles acredito que também tenha sido um teste extraordinário (a palavra parece-me corriqueira para a dimensão do desafio que enfrentaram). Dentro do desnorte em que todos ficámos, foram eles a vela do barco para nos levar por estas águas desconhecidas.

Por tudo isto, hoje agradeço a todos estes super heróis:

Alunos
Pais
Professores

Obrigada. Podia ser melhor? Podia. Mas teria sido muito pior não fosse este esforço conjunto de famílias e comunidade educativa para nos manter minimamente à tona de água.

Sobreviveremos? Certamente. Contaremos a história deste conto do fantástico, em quadrados de banda desenhada, como a grande lição de toda a nossa vida. 

Mas em que TODOS fomos Super Heróis desta história.

Vemo-nos em Setembro, para mais aventuras.

domingo, 29 de março de 2020

Este horrível mundo novo...

Acordo de noite em sobressalto, e dá-se um momento de tomada de consciência...
Pandemia, estado de emergência, vírus, morte...
Sim, é verdade... Não estamos num filme nem é um pesadelo. É a nossa realidade. A nossa nova realidade.
Olho os meus filhos e penso que recordações terão deste tempo de isolamento, penso como reagirão se algum de nós ou da família contrair a doença.
Fazem-me tanta falta os afectos. O toque de uma festa, um conforto no ombro, um abraço sentido, um beijo .... tantos beijos que deixei de dar.

Desde que este período horrível começou, e sem saber ainda a dimensão que tomaria, inquietava-me o ar preocupado do director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus. Perguntava-me como é que uma pessoa no lugar que ele ocupa não transmitia segurança. Não podia, não pode. E a tez enrugada que continua a envergar continua a fazer apertar o meu coração.

Tento ver notícias apenas uma vez por dia. O que é certo é que vou espreitando, é inevitável. Da frieza dos britânicos, vêm frases incríveis:" Se ficarmos abaixo das 20 mil mortes, é porque fizemos bem." Inacreditável. Fazem-se especulações sobre a mutação do vírus, sobre uma nova vaga no Inverno. E depois há chefes de estado que são, utilizando as palavras do primeiro-ministro repugnantes. Trump, Bolsonaro, Johnson... e tantos, mas tantos outros. Muitos morrerão pela sua mão. Nem nos nossos piores momentos, pensámos viver uma situação assim. 
As frases soam já demasiado repetidas, a incredulidade mantém-se.

Como muitos, tenho a minha vida profissional suspensa. Assusta-me. Muito.Tempos de guerra não eram para nós... Há lá no fundo uma réstia de esperança de que isto passe rápido, de que venha um dia, o dia em que saímos à rua e pronto, está tudo bem.

Custa-me imenso não ser optimista. Mas continuarei a ser. Inevitavelmente. Há momentos menos bons, mais desesperados.
Mas não nos resta outra opção senão perseverar.
Neste horrível mundo novo, resta-nos acreditar que  vai ficar tudo bem.
Só pode.





sexta-feira, 6 de março de 2020

Caro Covid 19

Serve o presente para te dirigir algumas palavras.
Começo por te dizer, muito directamente, que não és bem vindo. Cada vez te aproximas mais e lanças o pânico nas mentes mais paranóicas por onde passas.

Estás a destruir o que resta de humanidade nos seres humanos entediados, com a cabeça baixa nos ecrãs dos tablets e dos smartphones. 

Estás a dar armas aos introvertidos para que deixem de contactar com o próximo,  de tocar os idosos e de os visitar, e para que deixem que os mimos e os abraços e os beijos sejam o factor diferenciador nas relações cada vez  mais frias entre os humanos.

Acredito que os abraços vão salvar o mundo. E tu, covid19, que nem ao 20 chegas, destróis este caminho de carinho entre duas pessoas. E assim, em todo o mundo.

Os olhos podem sorrir mas a pele precisa de contacto, para que a energia do amor se transmita. Não há colo que seja demais, não há cafuné que as palavras possam soprar... e já nem estas podem ser ditas ao ouvido, presas na distância de segurança que tu nos impões.

Estás a retirar-nos o conforto no coração, que nos é dado pela certeza e pela fé de que podemos andar na rua sem que o mundo termine num diagnóstico de Adamastor, de Leviathan, de Godzilla, de King Kong... enfim, do pior monstro de todos... mesmo que seja o das bolachas, que podem até faltar na prateleira do super da esquina.

Desejo ardentemente que, de tanto te anunciares, todos te conheçam as manhas, que te denunciem as estratégias de disseminação e que, da tua sombra aterradora, te transformes num mosquitinho indefeso. E que assim voltes para as profundezas das cavernas, com teus amigos morcegos e pangolins e com eles vivas para sempre na escuridão.

Vai te retro,
Uma mãe de 2 filhos, calma mas atenta aos teus passos