Esta é a história do leite-creme do Natal. Do meu Natal. E bem vistas as coisas, do Natal de algumas outras pessoas e famílias também. É isto:
Em tempos recuados (sim, já tenho uns anos valentes para
poder usar esta expressão, que adoro!) da minha infância, o Natal fazia-se num
espaço chamado lareira, com uma grande lareira (imagine-se!) alentejana, ou
seja toda aberta e, uns anos mais tarde, uma já fechada, mas igualmente grande.
Na casa dos meus pais, claro.
Como em todos os lares, havia iguarias, doces e salgadas,
que não podiam faltar. Uma delas era o leite-creme. Caseirinho, caseirinho. A
minha mãe, na véspera da véspera, para que pudesse ter tempo e paciência,
munia-se dum tacho, largo e começava a fazer o doce, passando as gemas de ovos
por um passador, que juntava ao leite e açúcar ao lume. O processo era lento. Para
mim, criança, era uma eternidade. Mexe e mexe e mexe… muuuuuuuuiitoooooo
lentamente. Nada de maizenas para engrossar… Tudo muito devagarinho e lume
muito baixinho.
Na verdade, a receita foi transmitida de uma senhora amiga da
família, a D. Floripes, que o fazia num fogareiro com brasas de forno. Horas a
mexer. Para depois fazer chegar às casas de quem tinha pedido este mimo.
Passinho a passinho, numa taça, a tentar não verter pelo caminho.
Então, findo o processo de cozedura, aguardava-se que o meu
pai, com uma pá de ferro, que colocava a aquecer nas brasas da lareira,
queimasse o leite-creme, com açúcar amarelo, que deitava generosamente por cima
do preparado. O cheirinho a açúcar queimado… estão a sentir?!...
Os anos passaram e o Natal, o meu Natal passou a ser na
minha casa e fui eu que comecei a fazer esta iguaria-memória-de-natal-doce-
inesquecível-
cheio-de-calorias-mas-que-sabe-pelas-horas-e-que-faço-uma-vez-por-ano.
Do fogareiro com brasas, passando pelo lume a gás, estou agora
com o tacho em cima duma placa vitrocerâmica, a tentar não talhar os ovos, no
lento processo de engrossar a dita mistela. Nem vos conto as vezes que foi tudo
por água abaixo, literalmente, por lume demasiado quente, ou por um minutinho
em que desviei o olhar…
O meu pai, quando chegava à hora da ceia de Natal, tinha a
mesma tarefa de queimar o açúcar, mas agora com um ferro eléctrico. No ano
passado, por causa do muito fumo que deita, decidimos fazê-lo na rua, ao pé da
janela da cozinha. Sem querer, acabámos por queimar a madeira da janela (imagem
da foto)… mas, pronto, ossos do ofício de quem cria memórias de Natal, pensei
eu…Nunca imaginei que tanta importância teria...
Pois bem, este Natal voltarei a fazer o leite-creme. Mais
paciência a mexer o tacho, talvez. Mas, infelizmente, sem o meu pai para o
queimar… Já pedi ao meu mais novo para começar a nova tradição, de ser ele a
pegar no açúcar e no ferro, para, com todos os cuidados, honrarmos a sua
presença nas nossas vidas, com este gesto simples mas que sempre nos fará recordá-lo. Todos os anos, ele avaliava:” Oh Ana, está quase… “,
ou “ Está um bocadinho líquido…” e a mais recente, a notícia de que o meu irmão
estava a conseguir fazer a receita na Bymby… “Blasfémia!” – pensei. Mano,
vai uma aposta que o meu é melhor que o teu?? Ou serão as nossas primogénitas a
seguir com novas tradições??
E a receita, afinal, qual é? Claro que não vos vou dar as
quantidades certas – porque o segredo é a alma das memórias. Neste caso, de
Natal. Do meu Natal.