Porque há vida para além da paisagem... para além da rotina diária, do mundo das notícias e do ecrã. Reflexões daqui, dali de acolá ... e de cá de dentro, que é onde a nossa paisagem se molda e gera paz.

domingo, 16 de abril de 2023

Pai



Por esta altura, aquilo que parecia adormecido, recalcado no peito, levanta a tampa pesada, de chumbo do baú e começa a manifestar-se. Começa com um pequeno incómodo, uma sensação de inquietude, ligeira, moinha que se torna constante e cada vez mais exponenciada. E chega aquele instante em que tomo consciência do que é.

É tão só e apenas a consciência de que faz mais um ano… (e já são três, como é possível??) do dia mais difícil da minha vida. Chavões : parece que foi ontem, a vida muda num instante. Tudo verdade. Mas esta verdade que trago no meu peito, nunca ninguém a entenderá. Só porque é a minha, relativamente ao dia em que partiste. Este peso imenso de vazio no peito, que só aqueles que ficam sós de pais neste mundo entendem, nunca mais me abandonará.

Estive estes três anos a resenhar constantemente na minha cabeça estas palavras. Amachuquei mil rascunhos imaginários, que me doeram, que não eram o tempo certo, que não gostei…

Relembro-te todos os dias, claro. Numa expressão, num pombo que aparece em cima de um fio de eletricidade que passo a caminho. Num barulho estranho, num esquilo que teima em aparecer sempre em dias especiais, ou dias em que algo está prestes a acontecer. Repito muitas frases que dizias a miude, como quem declarava verdades universais. Eram as tuas, e ai de quem delas duvidasse.

Zango-me muitas vezes contigo ainda. Pergunto-te porque não fizeste diferente. Repito discussões que tivemos e nas quais gostaria que tivesses entendido o que te procurava dizer. Porque em todas elas, eu era apenas uma menina, a tua menina a procurar a tua aprovação. Foram anos, toda a minha vida até que te foste embora, de dedicação, de tentativa e esforço de te chegar aos calcanhares, de veneração cega, até determinada altura. E depois mais consciente, embora nunca tendo conseguido cortar aquele cordão que me amarrou a ti e à tua visão do mundo, até bem tarde. Desses tempos, muitos deles bem difíceis, guardo ainda, como traço de personalidade a constante procura da perfeição, do ser boa o suficiente, de fazer bem, de procurar sempre… mas sempre, ser melhor.

Desse esforço hercúleo e desgastante, muitas vezes, aprendi também a perdoar as minhas imperfeições, a deixar-me ser eu, e apenas eu. A ter tempo para mim, para a minha família, sem cobranças. A deixá-los ser, sem julgamentos ou expectativas.

Às vezes, peço-te ajuda, outras vezes tento nem sequer falar contigo, para que, do alto onde estás, não interfiras no que vamos querendo fazer e com o qual muito provavelmente não estarias de acordo.

Como vês, temos cuidado do que nos deixaste e do que conseguimos que ficasse connosco. Honramos-te em cada malva, em cada pé de alecrim que transplantaste para este pequeno paraíso, onde deixaste o teu traço, a tua pincelada. Esta história, aqui contada em cada passada destes caminhos que desbravaste, será sempre ligada a ti, será sempre a tua história. E recebo muito carinho de todos os que te conheciam e que têm a candura de mo transmitir. Deixaste um grande legado, eras o homem do leme.

Na minha rebeldia, vou alterando algumas coisas. Vou construindo outras histórias, as que são agora as nossas, sem ti tão perto. Vou tomando as rédeas.

Quereria ter sempre a tua aprovação, já sabes. Sei que andarás por aí, consigo sentir a tua presença. Quero apenas construir um caminho de paz interior, onde lidarei com este vazio violento, e aprenderei a dar-lhe maciez e doçura. Tentarei sempre tornar-me numa mulher do leme… onde a vida não seja sempre a perder.

Será, peço-te que assim o entendas, a maior honra que te farei.